quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

II Gaza - André Luís Alves

II

Gaza

 

Quis dizer estrada

Mas só tinha olfacto,

Quis dizer parágrafo, mas não sabia ler,

Quis dizer Gaza, mas só disse, checkpoint.

 

Atravessaram-se como travessões num discurso interrompido, à mira

de soldados suspensos no ar, com a violência de Golias, prontos a esmagar

olhos ébrios, excitados, entre o poder e o medo, a eros da certeza da missão,

que plano face à juventude das labaredas ou ao halo das inconsciências,

para disparar não preciso de alvo, treino com os meus amigos, entramos em casas,

deixo-lhes doces para as crianças, vinte shequels na mesa, uma simples patrulha nos telhados, os inocentes são culpados, porque aqui todos são culpados,

Sem língua, falar o quê, que a sorte já não existe, que a sombra já comeu a razão?

Nas vésperas do ataque, um, dois, três, todos os números, num calendário de décadas, entre aldeias sem luz, os pesadelos da noite anterior,

todas as estrelas que contemplámos, as searas de ódio que semeámos sobre as terras

“uma terra sem pessoas, para nós, pessoas sem terra”, colonizadas as raízes, a natureza reduzida a rectângulos, kibutz, colonatos, a ocupação militar, manobras em escuta, manobras aleatórias, mais uma patrulha indistinguível, como as cabeças, que as comandam, executam ou perseguem.

 

Cem dedadas no cérebro tenro duma criança é apenas um símbolo,

Daud, e o sangue amiúde de estilhaços escorre sobre os olivais que choram depois de queimados.

 

Toda esta terra proibida, nem a areia é nossa,

passa-nos entre os dedos, roça-os num arrepio

esperamos os ossos na carne,

a carne sem osso, as crianças,

todos os ossos desejam o tendão dum país

e diante disto, desisto esmorecido,

pareço cego a lançar rockets, quatro mil rockets,

invenções mais anti-bloqueio que anti-semitas.

Todos somos semitas, todos precisamos duma casa, um quarto.

Eis-nos diante da esperança.

 

Derrubam um homem numa cadeira de rodas.

 

Ele sozinho

Quis dizer estrada, mas só possuía o ar em volta do nariz,

Quis ele dizer país, mas só lhe pertencia o nada.

 

Queria dizer medo, mas só tinha cegueira,

meda de balbucios e gritos, porque sim, e o que arrepia

é que eu que cresci com esta guerra em casa,

numa casa sem porta,

porta sem estrada,

estrada para o nada,

e o presente despedaçado.

 

Aquele orifício no muro é uma estrada,

um espelho, a chama dum rosto, uma farpa, uma lupa,

uma navalha afiada vista de perto na glote, que pende sufocada,

mesmo quando vejo um olho dum velho já morto do outro lado,

mesmo quando vejo jovens judeus bêbados em Hebron no Purim

mesmo quando vejo um árabe louco, de ambos os lados,

mesmo quando vejo, e já não vejo nada, e a confusão explode.

 

Corremos paralelos para a reunião do confronto, quem atacou quem?

Primeiro, segundo. Espiamo-nos de lados opostos do mesmo muro,

o muro que é um espelho de fantasmas, de esqueletos que habitam na ruína

nas vinhas da ira em que bebemos o ódio iracundo, rutilante,

que refulge com armas e berços, facas que afiamos na língua,

granadas e fisgas, actos que se pagam caro, quando à noite

acordamos com um laser na testa, inocentes, crianças, tanto faz

o horror funda-se no aleatório da banalidade, uma, duas, três vezes, as estrelas

o refutar da causalidade da guerra, mas que pergunta, mato-te porque és

não porque me atacas, e ao sê-lo, cegas-me numa cabala sem limites.

 

“Não existia terra sem pessoas – nós criámos este sonho que impõe um pesadelo aos outros.”

 

 

Só tínhamos olfacto,

e os outro tinham terra, ferramentas, água e minerais,

tralhas, memórias e traumas,

Vieram duma promessa, e nós somos por isso os sem terra, Nakba desde então.

Não esqueceremos, o dia, a pedra em todos os sapatos desde que os pés correm, e as cabeças fogem, na terra que tremeu, e treme.

Com a nossa fuga, abriu-se uma fossa na Palestina, um aterro fundado no maestro

calor que foi ordem naquele caos, destino Beirute, nas estrelas o massacre escrito,

as estrelas sempre esse confronto de cores, na noite sem cor, que ali engolfava os dias. A serpente de mil cabeças teleguiadas ou a surata do elefante.

 André Luís Alves

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