Manuel Gusmão
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PASSAGENS, MUDANÇAS DE VOZ --
Lisboa,
2 de janeiro de 1950
para o
José Guilherme
o Daniel e o Pedro
«Era um homem alto e forte.
De origem camponesa, nasceu em
Murça,
por trás dos montes. Era um homem
encorpado
como imaginamos os camponeses».
Mas a fotografia
policial do cadáver
mostra a redução absoluta
do corpo e alma
a um corpo morto insuportável
magríssimo
à pele que é uma película de terra
sobre os ossos os terríveis ossos
aguçados da bacia
os dentes superiores
visíveis porque
se arrepanharam o lábio a pele
e aberta ficou a boca:
fome exausta
e estancada do humano uivo
–
os assassinos nem sequer lha fecharam.
Mataram-no: sob a violência,
da fome de outra
vida
ele fez a greve
da fome e com
isso foi morto.
Da morte que lhe faziam ele
fez a sua –
não lhes deixou inteiro o poder de o
matarem.
Mataram-no eles: mas não lhe puderam
roubar a morte sua.
E essa esperava ele que em outros
germinasse
como mais vida: a troca
daquilo que há por
essa vida outra.
Nós continuamos; dê
por onde
der
nós temos alguém
à espera lá fora ou aqui
dentro do que em nós hesitante e ameaçado
é entretanto um canto.
Mantém-te perto dessa fotografia
policial.
Por acidente ou fatalidade
da burocracia
da morte a fotografia não poupa muito
na imobilidade
em que o terror deflagra;
nem conta daquela morte o que entretanto
não pode ser esquecido nem contado.
«Aos 13 anos foi para o Brasil,
andou pela construção
civil,
pela metalurgia e
com aquela estranha
naturalidade
que em outros conhecemos tornou-se comunista.
Por isso foi expulso para Portugal, onde continuou.
Esteve preso em Angra do Heroísmo e no
Tarrafal
por duas vezes.
Uma vez em
liberdade voltava.
Continuava. Obstinado. “Contumaz”»
Não o conheceste. Não
te lembras. Só
podes tentar recordar.
Não. Só podes inventar que recordas.
Rememoras contra a amnésia, a asfixia, o crime
vulgar.
Não estavas lá. Não podes ser testemunha disso.
Não podes fazer de anjo que
anuncia
nem de anjo que redime. Não
podes
ir buscá-lo.
Não dirás sequer
o seu nome
porque isso
apagaria o que nele foi mais
do que um nome.
Chamaram-lhe
António, mas tinha
outros.
E entre tais nomes ele ia
acontecendo
o acontecer
que nenhuma história
contém.
Quantos sabem hoje o
nome dele, ou
o de outros?
Quilómetros e
quilómetros a pé ou
rodando os raios
da pesada bicicleta intensa, ele
tecia e desdobrava
sob o imenso e noturno céu do mundo, a pequena
noite
de um mapa de pequenos brilhos,
vagos lumes
entre os seus, os nossos antes de
nós; ele
fazia os fios
dos caminhos por onde em perigo seguia; e as palavras
que dizia ou que escritas
trazia ouviam e
reuniam aqueles que a vida fazem insubmissa.
Dizem-te que por vezes passava a noite
ao relento.
Que até levava
uma manta; deitava-se no chão da terra
confiante nela e na noite
que o cobria, com
estrelas ou
não.
Não podia ser assim, era um risco que corria.
Mas assim fazia.
Imaginas que deitado
no chão ele
era uma árvore
cujos ramos
cresciam dentro da noite
uma árvore que
desdobraria a noite que
o acolhia
e todo o vivo
respirava brandamente no seu sono de vivo.
Deitado na terra como uma árvore
de pé
ele estendia os seus
ramos de humano
intenso.
Um humano,
sabes? – pode ser uma floresta.
E as florestas convém à terra e
à sua noite.
Como ao peso com que a sombra desce do céu.
Quando acordava sucedia que
a manhã era
primeiro
só aquilo que lhe
permitia ver o que
o tocava e ele com
as mãos
tocava: grãos de terra que respiravam uma pequena
névoa;
plantas e gravetos que lhe faziam
uma sombra nos
olhos
e depois parecia que
iam cintilar; pequenos
bichos de que
não
sabia os nomes todos; pequenas pedras
que tinham nascido
de outras em outros lugares e ali
se reuniam por acaso.
Não deves usar as palavras poucas que
dele conheces escritas.
Por exemplo: ele escreveu:
«Dores, insónias, fome,
agonias,
tudo tenho sofrido nestes últimos
sete meses». Acaba aqui.
Sobretudo não deves dizer como escreveu ele a última carta
cerra os dentes sobre tal coisa, prende a língua,
esconde as tuas mãos.
Inventa. Terás de inventar
mas mantém-te perto
da sua morte
escrevendo.
O tempo apagará essa escrita
no papel que
se desfaz.
É também por isso que
escreves o caminho
no caminho.
A morte
dele não apaga nenhuma outra.
Não apaga o sem preço do sangue
que alaga o século
dos dois lados
da fronteira inapagável.
Quando citas a sua memória tens na boca
o sabor do sangue.
Ele morreu sozinho
e não morreu sozinho.
Já tentaste explicar e
sabes que não
consegues.
Alguém insiste: Ele
deu a vida? A quê?
A quem?
Não, não é assim que lá vais.
Repara: ele trocou
a morte pela
tua vinda.
Em verdade, ele trocou a vida
por mais
vida. Mas,
escuta:
ele não morreu
no lugar de ninguém
e também por
isso
não tens que esquecer as mortes
dos outros e dos outros.
mas quando é a
dele que agora
dizes é uma fidelidade
que escolhes. Por
ela estás a caminho,
quase cego.
Mas de que podes
tu falar quando falas
da fidelidade a um
morto que
nem sequer
conheceste? E
porque metes nisto a tão
frágil poesia,
a tão vaga
e
pura e livre invenção das antigas palavras
com que falamos hoje?
Não aprendeste nada
com o que
pensas saber
sobre as praias do
tempo? O ritmo
do vento fazendo
e desfazendo as dunas do deserto?
a imagem ofuscante
que nas margens
da página, da história,
guardaria
o trémulo perfil do poema,
abstrato risco
que, como um rascunho apagado e indelével
na parede dos subúrbios
que irá ruir,
espera o futuro que não podes conhecer?
É que ela é vaga e densa,
vagante e fixa como
aquela
rosa; e livre, sim, mas não segura; mas não pura;
antes vai para a fonte que abre no tempo os tempos
e vai impura.
É que ela tem parte
na parte que do mundo nos cabe fazer
por voz, em fala.
O poema é quem
responde ou ninguém…
ou talvez lhe possam responder aqueles que
de viva voz por si
respondem. Sua ou
deles,
ameaçada sempre será a resposta.
«Eu nada posso
garantir-te.
Envelheço e não sei já o que sabia.
Espero o futuro como quem sabe que espera a morte
e contudo não a
teme nem aceita».
O poema, esse aposta no escuro
que com ele alguém
virá usando a mesma língua noutra
voz
e noutro corpo. Alguém dizendo:
Aquela fotografia não
pode dizer o vivo
a sua voz que falhava e rouca
ressoava
no corredor interminável onde
havia
os postigos iluminados quatro
celas quatro
vigílias
e aquela voz esgotada. O seu
grito
alucinava o silêncio, o incêndio
da noite
a caminho do sol com aquele corpo dentro
ardendo ardendo até ao branco.
Sob as tempestades
de neve nós
continuamos
sobre a neve o rastro que arde.
(Militão Ribeiro)
1 comentário:
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Assim?, com a voz estrangulada?
Só o poeta (e comunista) consegue dar beleza ao horrível, fazer da morte vida, transformar o cadáver inerme em corpo, sangue, luta.
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