sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Miscellania de Garcia de Resende



SENHOR

As perdas, nojos, doenças,
e fortunas têm remédio,
mas quem deixa perder tempo,
nunca o mais pode cobrar:
eu, naquele, em que me vi,
descontente, e ocioso
e fora de ocupações,
não de paixões, e cuidados,
me ocupei em cuidar,
e recolher à memória
as muitas, e grandes coisas,
que em nossos dias passaram;
e as novas novidades,
grandes acontecimentos,
e desvairadas mudanças
de vidas, e de costumes,
tantos começos, e cabos,
tanto andar, e desandar,
tanto subir e descer,
tantas voltas más, e boas,
tanto fazer, desfazer,
tanto dar, tanto tomar,
tantas mortes, tantas guerras,
tão poucas vidas, e pazes,
tanto ter, tanto não ter,
tantos descontentamentos,
tantas, e vãs esperanças,
tanto mal, tão pouco bem,
tanto favor, desfavor,
tanto valer, desvaler,
tanto prazer, tantos nojos,
tão pouco dar por virtudes,
tantos falsos e mentiras,
tão pouca fé, e verdade,
tantos soberbos, e baixos,
tanto saber sem dar fruto,
tantos simples, e errados,
tão poucos os que acertam:
tantos serviços em vão,
tanto medrar sem servir,
tanto soltar, e prender,
tantos enganos, e modos,
tantos bons sem galardão,
e tantos maus sem castigo:
conselhos sem caridade,
ingratidão sem razão,
cobiças, pouco amor,
e amizades fingidas,
tão perseguida a Igreja,
de cristãos mais que de mouros,
tanto trabalhar por vida,
tão pouco por bem morrer:
tantos avaros tiranos,
tantos cuidados do mundo,
tantos descuidos de Deus
por coisas que hão de acabar.
E quem verdadeiramente
estas todas bem sentir,
verá que em muitos tempos
nunca tais aconteceram.
Quando senhor me lembrou
tamanho número delas,
e tão grande esquecimento,
que poucas vemos escritas;
me pareceu que erraria
não as pôr em lembrança,
e também outras pequenas,
que são dignas de notar:
e tanto foi o desejo,
que tive de o fazer,
que me esqueceu de quão pouca
suficiência tinha:
e porque tamanhos casos
me fizeram ter em pouco,
quanto o mundo agora pode,
e quanto pode poder;
determinei de sofrer,
de ouvir antes glosadores,
que deixar escurecido
o que devia ser claro:
e pois muitos gostam ver
livros, fábulas antigas,
a que por autoridade
dos escritores dão fé,
muito mais devem folgar
de ler estas, que tão certo
todos sabem, e alguns viram,
e esquecidas estavam;
mas a natureza é tal,
que poucos querem ouvir,
nem aprender, nem saber,
coisas certas, nem verdades,
e mais vendo esta obra
escrita por quem carece
de linguagem, de doçura,
de saber, graça, eloquência,
e em estilo tão baixo,
que vossa Alteza só
com seu favor lhe não vale,
bem em vão o meu trabalho.

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