sábado, 25 de janeiro de 2020

Trevas - JOSÉ MIGUEL SILVA

Trevas

E o pior é que chamamos liberdade
a um tapete que, rolante, já não ouve
a opinião dos nossos pés, que nos leva
para onde anuímos, alheados
aos mecânicos desígnios do poder.

Respiramos cadeados, consumimos
injustiça, damos duas várias voltas
ao risonho torniquete que nos serve
de chapéu e permutamos a cabeça
por um prato de aspirinas.

Os clássicos da vida sem tristeza
nem remorso (Cinderela, Varadero,
off-shore) iluminam o cenário em que
dormimos, inocentes como balas,
e nem sei como não somos mais felizes.

Para o centro do inferno conduzimos
este filho, o filho deste carro, cativados
p’lo direito conquistado de entregar
os nossos dias, como reses,
ao cutelo de despachos infiéis.

Viver é neste cerco uma questão
de prorrogar o desalento: cerramos
uma porta suicida, desatamos
a gravata, damos graças quando o gelo
na bebida se derrete devagar.

Se olhamos para o chão desaparece
o horizonte, se olhamos para o céu
ficamos sós. Não percebo como rimos
quando pedem que posemos para a foto
de família. Alguém nos enganamos.

Confundidos pelo surto da mentira,
leiloados pela última hipnose,
enxertados no pedúnculo da morte,
dizei-me se estes rostos de cartão amarrotado,
se esta alma como um campo pedregoso,

se estes pés afeiçoados ao espinho,
se isto que nós vemos é um homem.


JOSÉ MIGUEL SILVA
 

in Ulisses já não Mora Aqui (2002: 18-19)

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