domingo, 27 de abril de 2025

Meu maio - Vladimir Maiakovski

Meu maio


A todos
Que saíram às ruas


De corpo-máquina cansado,
A todos
Que imploram feriado
Às costas que a terra extenua –
Primeiro de Maio!
Meu mundo, em primaveras,
Derrete a neve com sol gaio.
Sou operário –
Este é o meu maio!
Sou camponês – Este é o meu mês.
Sou ferro –
Eis o maio que eu quero!
Sou terra –
O maio é minha era!

Vladimir Maiakovski

quinta-feira, 24 de abril de 2025

ESCULTOR O TEMPO - Manuel Veiga

 

ESCULTOR O TEMPO

 

Escultor de paisagens o tempo.

E estes rostos, onde me revejo.

E as mãos, arado.

E os punhos. E luta erguida…

Sons de fábricas que morrem

Perdidas na voragem dos dias

 

Infecundos. E do lucro

Sem fronteiras.

 

E, no entanto, esta torrente

E esta fonte que desce em cascata de palavras

Verbo que se faz carne. E ferve

No peito a latejar

Rubros cravos

E bandeiras..

 

Nada é definitivo quando a rocha

Se abre ao fogo. Nem a Revolução é um feito

Inacabado. Mas antes um horizonte aberto

A oferecer-se em cada tempo…

Sonho sempre novo

Em cada gesto

Logrado…

 

Qual poema sinfónico

A arder por dentro. Passo a passo

Numa cadência sem idade…

E este aguilhão e este alvoroço

E o rosto magoado deste Povo

A prescrever um tempo novo

Letra a letra

Liberdade.

 

Viva o 25 de Abril...

 

Manuel Veiga

 

sexta-feira, 18 de abril de 2025

"Da voz entre muralhas" - Carlos Maria de Araújo

 

"Da voz entre muralhas"

 

O osso descarnado

a água escassa

e estes ferros

nos pés

e estes ferros

 

Este rio de suor

a dor inteira

e esta noite

de granito

e esta noite

 

Este chicote

rasgando-nos a boca

mas nunca o grito

companheiro

até quando

companheiro

Carlos Maria de Araújo

Araújo, 1960 p.42-3

Carlos Maria de Araújo segundo Jorge de Sena
   [...]
   A sua obra muito breve é por certo das mais notáveis da poesia portuguesa que o desconhece ainda [...]; e pode considerar-se representada pelos dois livros que publicou pouco antes de morrer. Poesia extremamente despojada e densa, de uma intensa severidade formal e de vigorosa emoção contida numa expressão lapidar, é bem a de um oficiante das trevas, dessas trevas que tão terrivelmente cobrem a vida e o mundo. Nos seus ritmos curtos e sincopados, sob os quais todavia flui oculta uma simplicidade quase sentimental, esta poesia significa, como poucas das recentes, uma fulgurante definição do exílio português, no que ele tem de amargo e de frustrado, como no que, nele, resiste a tudo e mesmo ao medo que o verso tenha de sê-lo na boca do poeta, qual este disse num dos seus mais belos poemas.

 

quarta-feira, 16 de abril de 2025

IGNAZIO BUTTITTA - Não me deixes só

Non mi lasciare solo

Não me deixes só

Ouve-me, falo-te esta noite

 e parece-me falar ao mundo.

 

 Quero dizer-te que não me deixes só

 nesta estrada longa sem fim

e tem os dias curtos.

 

Quero dizer-te

que quatro olhos vêem melhor,

que milhões de olhos vendo mais longe,

 e que o peso dividido sobre os ombros torna-se leve.

 

Quero dizer-te

que se te apoiares em mim e eu me apoiar a ti

 não podemos cair

mesmo que a tempestade nos siga em rajadas.

 

Os pássaros voam em bandos, cantam em bandos,

um canto só é lamento e morre no ar.      

 

Não abaixes os olhos, quero-te amigo á mesa;

e não é verdade, que sejamos diferentes

estendo-te os braços e chamo-te de irmão...

 

Irmão eu sou e companheiro

 dobrado para arrancar os espinhos que ensanguentam os pés:

 irmão e companheiro levantados para rasgar as nuvens

e apagar o relâmpago:

 irmão e companheiro

 

Um não conta,

nascemos para cantar juntos

e não deixar um legado de lágrimas repito de lágrimas.

 

morres e ficas nadando

no leito do rio que desagua no mar,

na cama que conta a história de todos os tempos

 

E serão dias como estes: com nascer e sol

os galos que cantam, as árvores que florescem,

homens na terra e biliões de estrelas no céu.

 

Dias assim: com a luz nas ruas,

as mesas postas, as crianças brincando,

 e o amor nas camas com boca de cordeiro e de lobo.

 

Dias assim: contigo e comigo

com outros nomes para consultar livros,

experimentar, julgar os vivos e os mortos

se eles merecem... se nós merecemos o perdão...

 

 

Perdão pelas guerras em cadeia, pelos massacres

para Hiroxima queimada,

para os poetas de tiro.

 

Perdão para as câmaras de gás

pela injustiça codificada,

para os infames iluminados no paraíso da terra,

para Cristo na cruz e o carrasco no altar.

 

Estou-me confessando

Quem me absolve?

Quem te absolve?

 

História não,

se pudermos fazer a paz da guerra,

chorando alegria,

liberdade escravidão,

odeio amor

e não o fazemos.

 

Na história, não

Se pudermos derrubar as paredes de pedra óssea

que levantamos todos os dias com as mãos sujas,

tu e eu, com as mãos sujas, e não o fazemos.

IGNAZIO BUTTITTA


Non mi lasciare solo
Ascoltami, parlo a te stasera
e mi pare di parlare al mondo.

Ti voglio dire di non lasciarmi solo
in questa strada lunga che non fìnisce mai
e ha i giorni corti.

Ti voglio dire
che quattro occhi vedono meglio,
che milioni d'occhi vedono píú lontano,
e che il peso diviso sulle spalle diventa leggero.

Ti voglio dire
che se t’appoggi a me e io mi appoggio a te
non possiamo cadere
nemmeno se la bufera c'insegue a ventate.

Gli uccelli volano a stormo, cantano a stormo,
un canto solo è lamento e muore nell'aria

Non abbassare gli occhi, ti voglio amico a tavola;
e non è vero mai che sei diverso da me
che allungo le braccia ti chiamo fratello.

Fratello ti sono e compagno
curvato a strappare le spine che insanguinano i piedi:
fratello e compagno alzato a lacerare le nuvole
a spegnere i lampi:
fratello e compagno
se scoppiano i tuoni e trema la terra,
se spunta il sole e l'abbraccia

Uno non fa numero,
siamo nati per cantare assieme
e non per lasciare eredità di lacrime repítío di lamenti.

Si muore e si resta a nuotare
sul letto del fiume che scivola a mare,
sul letto che racconta la storia di sempre

E saranno giorni come questi: con l'alba e il sole
i galli che cantano gli alberi che fioriscono,
gli uomini in terra e miliardi di stelle nel cielo.

Giorni come questi: con la luce nelle strade
le tavole imbandite, i bambini che giocano,
e l'amore nei letti con la bocca di agnello e di lupo.

Giorni come questi: con te e con me
chiamati con altri nomi a consultare libri,
a sperimentare, a giudicare i vivi e i morti
se meritano…se meritiamo perdono.

Perdono per le guerre a catena, per le stragi
per Híroshima bruciata,
per i poeti fucilati.

Perdono per le camere a gas
per l'ingiustizia codificata,
per l'infemo acceso nel paradiso della terra,
per Cristo in croce e il boia all'altare.

Mi sto confessando
Chi mi assolve?
Chi ti assolve?

La storia no,
se possiamo fare la guerra pace,
il pianto gioia,
la schiavítú libertà,
l'odio amore
e non lo facciamo.

A storia no
Se possiamo abbattere i muri di pietra d'ossa
che innalziamo ogni giorno con le mani lorde,
tu e io, con le mani lorde, e non lo facciamo .


da - pensierisinistri.ilcanno
cchiale.i

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Sonho - Hannah Arendt

Sonho

Pés flutuando em brilho patético.
Eu mesma,
também eu danço
livre do peso
no escuro, no imenso.
Espaços cerrados de eras passadas
distâncias trilhadas
solidões dissipadas
começam a dançar, a dançar.

Eu mesma,
também eu danço.
Irónica e destemida
de nada esquecida
eu conheço o imenso
eu conheço o peso
eu danço, e danço
em brilho irônico.

*

O dia nos leva incessante para longe de quem
há pouco, no marco da porta, reunia suas forças.
As portas trancam-se incessantes, e as pontes caem
na correnteza que corre, teu pé mal as alcança.

*

Justiça e Liberdade
irmãos, não temam!
Diante de nós brilha a manhã.
Justiça e Liberdade
irmãos, coragem!
Amanhã vencemos satã.

Sobre os montes
desde os vales
arrastem o prumo de metal.
Justiça e Liberdade,
irmãos, avante!
Somos o Juízo Final.

Terras amplas
ruas estreitas
irmãos, esse é o nosso passo!
Rir, chorar
amar e odiar
os deuses estão do nosso lado.

Hannah Arendt

*Poema do livro “também eu danço”, Editora Relicário, 2022.
Tradução de Daniel Arelli 

 

terça-feira, 8 de abril de 2025

Expulso por um bom motivo de Bertolt Brecht

"Então, qual é o sentido de dizer a verdade sobre o fascismo que é condenado se nada é dito contra o capitalismo que o origina?" Bertolt Brecht

 

Expulso por um bom motivo

de Bertolt Brecht

Eu cresci como filho

De gente abastada. Meus pais

Me colocaram um colarinho, e me educaram

No hábito de ser servido

E me ensinaram a dar ordens. Mas quando

Já crescido, olhei em torno de mim

Não me agradaram as pessoas da minha classe e me juntei

À gente pequena.

Assim

Eles criaram um traidor, ensinaram-lhe

Suas artes, e ele

Denuncia-os ao inimigo.

Sim, eu conto seus segredos. Fico

Entre o povo e explico

Como eles trapaceiam, e digo o que virá, pois

Estou instruído em seus planos.

O latim de seus clérigos corruptos

Traduzo palavra por palavra em linguagem comum,

Então

Ele se revela uma farsa. Tomo

A balança da sua justiça e mostro

Os pesos falsos. E os seus informantes relatam

Que me encontro entre os despossuídos, quando

Tramam a revolta.

Eles me advertiram e me tomaram

O que ganhei com meu trabalho. E quando me corrigi

Eles foram me caçar, mas

Em minha casa

Encontraram apenas escritos que expunham

Suas tramas contra o povo. Então

Enviaram uma ordem de prisão

Acusando-me de ter ideias baixas, isto é

As ideias da gente baixa.

Aonde vou sou marcado

Aos olhos dos possuidores.

Mas os despossuídos

Leem a ordem de prisão

E me oferecem abrigo. Você, dizem

Foi expulso por bom motivo.

O Fascismo é a Verdadeira Face do Capitalismo

Bertolt Brecht

1935


Primeira Edição: Texto de 1935, conforme a tradução de Richard Winston para a revista Twice a Year. Textos escolhidos de Twice a Year, 1938-48. Syracuse University Press, 1964.

sábado, 5 de abril de 2025

Uma Lamentação por Gaza - Brant Rosen


Uma Lamentação por Gaza

Gaza chora sozinha.

Bombas caindo sem fim

suas faces molhadas de lágrimas.

Uma viúva abandonada

presa por todos os lados

sem ninguém disposto a salvá-la.


Nós que uma vez conhecemos a opressão

Tornamo-nos os opressores.

Aqueles que foram perseguidos

agora são os perseguidores.

Desalojamos famílias

de suas casas, temos

levou-os profundamente

este lugar desolado,

esta estreita faixa de exílio.


Ao longo de todas as estradas há luto.

Os mercados fervilhantes

foram bombardeados até o vazio.

Os únicos sons que ouvimos

são gritos de dor

sirenes tocando

drones zumbindo

amargura ecoando

no vácuo negro

de casas destruídas

e sonhos negados.


Tornámo-nos senhores de Gaza

aplanamos bairros

com o simples toque de um botão

por sua transgressão de resistência.

Seus filhos nascem em cativeiro

eles nos conhecem apenas como ocupantes

inimigos a serem temidos

e odiado.


Perdemos tudo

que uma vez foi precioso para nós.

Este apego fatal ao nosso próprio poder

tornou-se nossa ruína.

Esta veneração idólatra da terra

nos fez vagar por

um deserto criado por nós mesmos.


Roubámos Gaza de

sua mais profunda dignidade

mergulhou-a na tristeza e na escuridão.

Seu povo se aglomera em campos de refugiados

mantidos em cativeiro por cercas e zonas tampão

canhoneiras, morteiros

e mísseis Apache.


Cantamos sobre Jerusalém,

para “um povo livre em sua própria terra”

mas a nossa canção tornou-se uma zombaria.

Como podemos cantar uma canção de liberdade

preso dentro de trás dos muros que construímos

com nosso próprio medo e pavor?

 

Aqui estamos sentados agarrados às nossas ilusões

de conforto e segurança

enquanto desencadeamos o inferno na terra

do outro lado da fronteira.

Sentamos nas encostas e torcemos

enquanto nossas explosões iluminam o céu

enquanto muito abaixo, bairros inteiros

são reduzidos a escombros.


Por estas coisas eu choro:

pelo medo tóxico que desencadeamos

do lugar escuro dos nossos corações

pela dor sem fim

estamos infligindo

sobre o povo de Gaza

Brant Rosen

A Lamentation for Gaza

Gaza weeps alone.
Bombs falling without end
her cheeks wet with tears.
A widow abandoned
imprisoned on all sides
with none willing to save her.

We who once knew oppression
have become the oppressors.
Those who have been pursued
are now the pursuers.
We have uprooted families
from their homes, we have
driven them deep into
this desolate place,
this narrow strip of exile.

All along the roads there is mourning.
The teeming marketplaces
have been bombed into emptiness.
The only sounds we hear
are cries of pain
sirens blaring
drones buzzing
bitterness echoing
into the black vacuum
of homes destroyed
and dreams denied.

We have become Gaza’s master
leveling neighborhoods
with the mere touch of a button
for her transgression of resistance.
Her children are born into captivity
they know us only as occupiers
enemies to be feared
and hated.

We have lost all
that once was precious to us.
This fatal attachment to our own might
has become our downfall.
This idolatrous veneration of the land
has sent us wandering into
a wilderness of our own making.

We have robbed Gaza of
her deepest dignity
plunged her into sorrow and darkness.
Her people crowd into refugee camps
held captive by fences and buffer zones
gunboats, mortar rounds
and Apache missles.

We sing of Jerusalem,
to “a free people in their own land”
but our song has become a mockery.
How can we sing a song of freedom
imprisoned inside behind walls we have built
with our own fear and dread?

Here we sit clinging to our illusions
of comfort and security
while we unleash hell on earth
on the other side of the border.
We sit on hillsides and cheer
as our explosions light up the sky
while far below, whole neighborhoods
are reduced to rubble.


quinta-feira, 3 de abril de 2025

O Apocalipse Árabe - Etel Adnam

 

O Apocalipse Árabe
tradução de Ricardo Domeneck

XXXVI 


Na escura irritação dos olhos esconde-se uma cobra

Nas expirações de americanos há um império em queda

Nas águas podres dos rios há os palestinos

FORA FORA de suas fronteiras a dor tem no pescoço uma coleira

Nos estames do trigo há insetos vacinados contra o pão

Nos barcos árabes há tubarões tombados de riso

Na barriga do camelo há rodovias cegas

FORA FORA do TEMPO há a esperança em pedaços da primavera

No dilúvio das nossas planícies não há chuvas mas pedras

Etel Adnam


XXXVI 

In the dark irritation of the eyes there is a snake hiding

In the exhalations of Americans there is a crumbling empire


In the foul waters of the rivers there are Palestinians


OUT OUT of its borders pain has a leash on its neck


In the wheat stalks there are insects vaccinated against bread


In the Arabian boats there are sharks shaken with laughter


In the camel’s belly there are blind highways


OUT OUT of TIME there is spring’s shattered hope


In the deluge on our plains there are no rains but stones



terça-feira, 1 de abril de 2025

Pablo Neruda - XIV O povo

XIV

O povo

 

Passeava o povo suas bandeiras rubras

e entre eles na pedra que tocaram

estive, na jornada fragorosa

e nas altas canções da luta.

Vi como passo a passo conquistavam.

Somente a resistência dele era caminho,

e isolados eram como troços partidos

duma estrela, sem boca e sem brilho.

Juntos na unidade feita em silêncio,

eram o fogo, o canto indestrutível,

o lento passo do homem na terra

feito profundidades e batalhas.

Eram a dignidade que combatia

o que foi pisoteado, e despertava

como um sistema, a ordem das vidas

que tocavam as portas e se sentavam

na sala central com suas bandeiras.

 

Pablo Neruda

Cântico Geral