terça-feira, 31 de março de 2020

CONVERSA COM O LIXEIRO - Carlos Drummond de Andrade


 
CONVERSA COM O LIXEIRO

Amigo lixeiro, mais paciência.
Você não pode fazer greve.
Não lhe falaram isto, pela voz
do seu prudente sindicato?
Não sabe que sua pá de lixo
é essencial a segurança nacional?
...
A lei o diz (decreto-lei que
nem sei se pode assim chamar-se,
em todo caso papel forte,
papel assustador). Tome cuidado,
lixeiro camarada, e pegue a pá,
me remova depressa este monturo
que ofende a minha vista e o meu olfato.

Você já pensou que descalabro,
que injustiça ao nosso status ipanêmico, lebloniano, sanconrádico, barramárico, se as calçadas da Vieira Souto e outras conspícuas vias de alto coturno continuarem repletas de pacotes, latões e sacos plásticos (estes, embora azuis), anunciando uma outra e feia festa: a da decomposição mor das coisas do nosso tempo, orgulhoso de técnica e de cleaning?

Ah, que feio, meu querido,
este irmanar de ruas, avenidas,
becos, bulevares, vielas e betesgas e tatatá do nosso Rio tão turístico e tão compartimentado socialmente, na mesma chave de perfume intenso que Lanvin jamais assinaria!

Veja você, meu caro irrefletido:
a Rua Cata-Piolho, em Deus-me-livre,
equiparada à Atlântica Avenida
(ou esta àquela)
por idêntico cheiro e as mesmas moscas
sartrianamente varejando,
os restos tão diversos uns dos outros,
como se até nos restos não houvesse
a diferença que vai do lixo ao luxo!

Há lixo e lixo, meu lixeiro.
O lixo comercial é bem distinto
do lixo residencial, e este, complexo,
oferece os mais vários atrativos
a quem sequer tem lixo a jogar fora.
Ouço falar que tudo se resume
em você ganhar um pouco mais
de mínimos salários.
Ora essa, rapaz: já não lhe basta
ser o confiável serviçal
a que o Rio confere a alta missão
de sumir com seus podres, contribuindo
para que nossa imagem se redobre
de graças mil sob este céu de anil?

Vamos, aperte mais o cinto,
se o tiver (barbante mesmo serve)
e pense na cidade, nos seus mitos
que cumpre manter asseados e luzidos.

Não me faça mais greve, irmão-lixeiro.
Eu sei que há pouco pão e muita pá,
e nem sempre ou jamais se encontram dólares, jóias, letras de câmbio e outros milagres no aterro sanitário.

E daí? Você tem a ginga, o molejo necessários para tirar de letra um samba caprichado naqueles comerciais de televisão, e ganhar com isto o seu cachê fazendo frente ao torniquete da inflação.

Pelo que, prezadíssimo lixeiro,
estamos conversados e entendidos:
você já sabe que é essencial
à segurança nacional
e, por que não, à segurança multinacional.






sábado, 28 de março de 2020

De Passagem - Alexandre O'Neill


De Passagem
 
I

Vai-te vai-te
tu que andas como um cego a fingir de vidente
tu que deixas abismados os adolescentes
com teus gestos de Embaixador do Invisível
de Sacerdote do Murmúrio
de generoso Dador do Sangue da Vertigem
vai-te
e que as mulheres que alguma vez te serviram de mãe
te recolham de novo e te cubram com trapos de ternura
com piolhos de ternura
com chagas
ranho
esterco de ternura
e que depois te dispam como se despem os velhos e as crianças
e levem anos a descolar do teu corpo confrangido
as crostas que por ternura lá puseram
anos e anos às soleiras das portas
a livrar-te dos piolhos dos milhares de piolhos
que sugam a tua cabeça de pateta

E quando puderes revolta-te
toma o Caminho-de-Todas-as-Surpresas
o caminho que correste ao contrário
em desumano sentido proibido
luta com os vagabundos de sonho que encontrares
e extermina-os
eles são a tua velha presença nesta terra de homens
são o que tu pensavas ter de mais humano
luta com eles e prossegue
precipita o teu novo ser
corre à tua frente
deixa lá os gritos e as rezas
as cartas das mulheres que ficaram para trás
anda anda sempre
começas a parecer-te com qualquer um de nós
e o teu riso já é humano

II

E também tu ó o dos gestos de martelo cósmico
também tu falso estribo do orgulho
vaidade espiada nas montras
onde o luxo mostra os dentes à canalha
tu mesmo
miséria esplendente destas ruas
enrodilhado sonho de grandezas impossíveis
cisne pálido do cinismo
arroto azul
sangue de empréstimo
lapela das pequenas virtudes dos pequenos mitos
que te sustentam ainda ó morto já de há muito
desaparece também tu no grande esgoto
que faz justiça a todos
não te resignes a esperar
aqui és só grotesco
só esse luar essa ilusão de vida
que furtas ao dia-a-dia
esse rompante megalómano
diário esconjuro do medo
espelhinho de hora a hora interrogado

Desaparece agora que ninguém dá por ti
agora que os martelos cósmicos
dormem o sono da eterna ferrugem
algures no céu já morto

quinta-feira, 26 de março de 2020

CADA SEGUNDO - António Osório

"A Igreja diz que a Terra é achatada, 
mas sei que ela é redonda, porque vi a sombra dela na Lua,
 e acredito mais numa sombra do que na igreja."
Fernão de Magalhães

CADA SEGUNDO

Não desejo a indigência,
a serenidade
dos lugares desertados:
desejo que cada segundo
quando amo
                         explodisse
e fosse a terra
em sua expansão
durante a primeira noite,
a gestante,
do mundo. 


quarta-feira, 25 de março de 2020