PENA
AGRAVADA
(para
Vítor Silva Tavares)
Estou a
cumprir pena perpétua.
Na
infância, uns filhos da puta rodearam-me
com
triângulos escalenos e não pude
fazer
mais que emocionar-me. Nesse tempo,
a minha ocupação
eram as luzes coloridas e um rio
em que as
barcas abrangentes conduziam as almas
para o
inferno, sem que dessa escuridão se suspeitasse.
Nos anos
cinquenta a miséria absoluta confrontava-se
com um
menino inocente, que o alarido dos vizinhos
amedrontava,
sendo que alguns deles sangravam dos ouvidos
e dormiam
ao relento sob as árvores, e bebiam
até que
pelas veias corresse apenas álcool. Com cuidado,
olhava-os
nos olhos, a fazer do silêncio um primeiro
recorte
obsessivo de palavras, películas vermelhas
que
invadiam a nítida frescura do meu pátio.
Estava
ali e queria persistir, talvez porque pensasse
que há
lugares ilesos um pouco para além
dos
gemidos da noite e do chicote
com que a
turbulência arrasa certas vidas
que não
podem mais que o pão quotidiano,
sobretudo
se o desamparo é não o ter.
Agir, por
essa altura, era crescer, embora o crescimento
seja uma
fortuna inverosímil, que se pega
ao corpo
a assinalar o teor que há na dor
de modo
mais profundo e explícito, em que a morte
é como um
sinal de perigo, mas não exactamente
uma
ameaça. Fazia sete anos e era pastor aquando
do
passamento da mulher amada, a quem chamei avó
e sei que
é um álamo verde nestas margens
em que me
reduzo a pó nesta memória
de a
lembrar agora a inscrever nas praças do seu tempo
um menino
escandaloso de passar por elas
com os
cabelos soltos e a anca em fogo.
Compôs-se
então de treva a claridade e aprendi a ler.
Foi-me
tormento a escola e o terror
de ter
por mestres gente que batia nas crianças
e andava
curvada sobre o tempo
que se
estendia cinzento sobre os dias,
sem
qualquer alegria que a tristeza anódina
dos que
perderam para sempre a macieira
mágica.
Cheguei a presumir que nos temiam,
sendo as
nossas certezas tão escassas
mas tão
vociferantes essas figuras
que nos
faziam crer que compensava o crime
de nos
manterem reféns no estrado,
completamente
prontos para a impunidade
de uma
régua mortífera nos nós dos nossos dedos.
Mijávamo-nos
de pavor pela violência inumerável
da
aprendizagem, onde o fulgor coalhava
com
notícias do céu tão abstractas
como o
facto de sermos navegantes
há tanto
tempo que não o lembrávamos.
Até que
um dia, já adolescente,
descobri
o poder da poesia que, a par com o mar,
aprendi a
fitar com imprudência, por serem
revoltosas
essas águas em que o dia
e a noite
se confundem. Era essa imprudência
o
desassombro de ouvir o longínquo e o genesíaco,
com
homens e mulheres a recortar-se
da
imensidão dos tempos, a cantar a dolência
e o
sublime, a invectivar o mistério e a ampliar
o enigma
que há entre os enigmas, ou o surto
de
sentidos que, num sopro, agrega ao infinito
o
infinito, para que haja mais infinito no sentido.
No meu
país, então, grassava a guerra
e para os
da minha idade só havia
essa
promessa como compromisso,
que
abarcava a morte pela extorsão
e a posse
da terra, e a escravatura
de outros
homens em tudo iguais a nós.
Longos
anos durou essa aflição, até que um dia
o mais
cruel dos meses comportou
a
amenidade esperada, dando à paz
um fugaz
clarão de expectativa.
Por essa
estrada ia a descobrir os gregos
e não
tardei a ver com que punhais
trabalhava
a insídia e aos abutres
se não
devem confiar os braços levantados
para a
prece comum. Os pobres
estão
mais pobres do que nunca e despojado
o mundo
pelos roubos que, entre acerto e desacerto,
cada um
de nós vai consentindo, por cobardia,
fraqueza,
ignomínia. Ainda assim eu quis resistir.
E li mais
gregos, e instintivamente olhei o mar.
E fui,
contra a corrente, nessa corrente
de vozes
subterrâneas e ventanias densas
que me
tornaram órfão de tudo quanto amei
e perplexo
amante de um recontro tenso
com o
poema oculto no poema
em que,
mais do que o amor, surpreendi a morte
com que,
fora de mim, por dentro me revejo,
agora
que, ungido pelo vazio, só mesmo a poesia
sobrevêm.
Triângulos escalenos trouxeram-me a este cais
e, tal
como na infância, uns filhos da puta me rodeiam.
Não posso
fazer mais que emocionar-me.
in Antecedentes Criminais - Antologia Pessoal
1982-2007, Quasi Edições, Abril de 2007, pp. 9-11.
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