sábado, 28 de março de 2020

De Passagem - Alexandre O'Neill


De Passagem
 
I

Vai-te vai-te
tu que andas como um cego a fingir de vidente
tu que deixas abismados os adolescentes
com teus gestos de Embaixador do Invisível
de Sacerdote do Murmúrio
de generoso Dador do Sangue da Vertigem
vai-te
e que as mulheres que alguma vez te serviram de mãe
te recolham de novo e te cubram com trapos de ternura
com piolhos de ternura
com chagas
ranho
esterco de ternura
e que depois te dispam como se despem os velhos e as crianças
e levem anos a descolar do teu corpo confrangido
as crostas que por ternura lá puseram
anos e anos às soleiras das portas
a livrar-te dos piolhos dos milhares de piolhos
que sugam a tua cabeça de pateta

E quando puderes revolta-te
toma o Caminho-de-Todas-as-Surpresas
o caminho que correste ao contrário
em desumano sentido proibido
luta com os vagabundos de sonho que encontrares
e extermina-os
eles são a tua velha presença nesta terra de homens
são o que tu pensavas ter de mais humano
luta com eles e prossegue
precipita o teu novo ser
corre à tua frente
deixa lá os gritos e as rezas
as cartas das mulheres que ficaram para trás
anda anda sempre
começas a parecer-te com qualquer um de nós
e o teu riso já é humano

II

E também tu ó o dos gestos de martelo cósmico
também tu falso estribo do orgulho
vaidade espiada nas montras
onde o luxo mostra os dentes à canalha
tu mesmo
miséria esplendente destas ruas
enrodilhado sonho de grandezas impossíveis
cisne pálido do cinismo
arroto azul
sangue de empréstimo
lapela das pequenas virtudes dos pequenos mitos
que te sustentam ainda ó morto já de há muito
desaparece também tu no grande esgoto
que faz justiça a todos
não te resignes a esperar
aqui és só grotesco
só esse luar essa ilusão de vida
que furtas ao dia-a-dia
esse rompante megalómano
diário esconjuro do medo
espelhinho de hora a hora interrogado

Desaparece agora que ninguém dá por ti
agora que os martelos cósmicos
dormem o sono da eterna ferrugem
algures no céu já morto

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