Três balas detiveram companheira
meu rio em seu humano curso
Não bastou a primeira
para dobrar-me a rigidez do torso
Mísero dia, esse ! Só na morte
cumpro inteiro o destino desejado:
impassível e forte,
juvenil e alado
Três balas como um sopro de agonia,
não minha ! não da pátria ! mas dos seres
desconhecidos da zoologia,
que recebem da infâmia os seus poderes.
Aqui nesta tarde de Maio
canto obsessivamente a minha pátria
Canto-a como quem ama ou sonha com o lar e refúgio
calmo braseiro fértil jardim litoral merecido
Canto-a de dentro para fora ignoto
descobri da ilha antes do mar viciosa
esperança lúbrico entardecer
Canto dizendo pátria olhos despertos
fecundado de amor
ó pátria local do único abandono
possível antes da hora
liberdade serena consentida
visão paradisíaca renascer da amizade
Canto e à minha volta o rio humano flui
adolescentes entram nos cafés
discutem-se negócios conquista-se duramente o pão quotidiano
ama-se
telefona-se
murmuram-se boatos e promessas de emprego
Aqui neste ano de 1962
primeiro de Maio
às três horas da tarde
E de novo pergunto poderei acaso dizer outras palavras
falar do tempo do relógio de ponto dos passeios aos domingos
cerrar os olhos à coreografia da violência
diariamente aprendida por entre o sal das lágrimas
Poderei esquecer como se não me pertencessem
seus nomes usuais
a decisão alegre e corajosa
que sombreia de medo o sono dos carrascos
Uma mulher desliza
meus olhos vão com ela presos ao ondular das suas ancas
Ah mas que também o amor me não distraia
que eu possa manter-me lúcido e desperto
ávido
estátua imóvel de proa
terrível como a angústia
neste primeiro de Maio de 1962
às três horas da tarde
precisamente não antes nem depois
não ontem amanhã ou dia incerto de qualquer mês e ano
mas HOJE
às TRÊS HORAS EXACTAS
numa esquina da estação do Rossio
Que nada possa calar o meu ódio e desprezo
nem sequer tu Amada companheira
E no entanto lembro o nosso primeiro encontro
retiro dele a força indispensável
para seguir cantando
atento ao mudo apelo do pequeno vendedor de jornais
aos olhos tristes da prostituta grávida
ao passo arrastado do carregador da estação
De mãos dadas
no jardim sob a chuva
reinventando o amor
ou
no primeiro andar de um autocarro
através da cidade sem destino preciso
Recordo o calor de Julho e o aroma dos pinheiros
amámo-nos sobre a terra
eram três horas da tarde como agora
tínhamos pouco dinheiro
e havia um barco à nossa espera inevitavelmente
Com tudo isso teço o meu próprio disfarce
com a ternura grave que me dás
alimento também certa rosa vermelha
in 'Pátria, Lugar de Exílio'
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