V
Israel
Luto contra o inimigo porque me faz sentir vivo,
luto logo existo, ataco para me defender, não
queria estar aqui
sei lá, as lágrimas que provoco, tento não
pensar,
as fotografias provam o que faço, mesmo as que eu
tiro,
são o que quero esquecer, os arquivos roubados,
epitáfios de vidas que se esfumaram como se
secasse um rio.
Escravos da memória,
este é o nosso trauma, o nosso mapa horário,
temos séculos de raiva e nenhum enviado
mensageiro para nos ensinar a paz,
ou a paz, que soubemos esquecer,
ninguém para nos ensinar “Quero viver, não quero
morrer”, mensagem estranha
nesta cartografia de ruínas e vísceras, vésperas,
vivos e mortos, faustos do ausente.
O judaísmo não pode ser definido pela vítima.
Não criámos o Holocausto, logo não nos pode
definir como povo.
O que nos resta senão os restos do muro, o tempo
a nascer do muro, o antes que já ninguém se lembra, o êxodo, o exílio, o
enforcado, a fogueira, o eterno murro no deserto, decerto um mar de lamento.
Jerusalém, lá estarei no próximo ano,
L’Shana Haba’ah
B’Yerushalayim.
Nascemos da esperança, da consciência, da órfã
folha viva de erva, prata que brilha, aceitámos viver assim porque a memória
colectiva nos banalizou o mal, nos ensinou o horror, nos perfurou a razão plena
de não perguntar, de fechar os olhos,
mesmo quando todo mundo vê. A sobrevivência e a
segurança são mais que isto.
“Eu quero viver, não quero matar, nem morrer.”
Tratamo-los como os ratos,
mataram-nos como ratos,
intentaram extermina-nos como uma praga de ratos.
Agora nós, eles ratos,
na duplicação infinita do espelho do mal, um
espelho face a outro espelho colérico,
a violência bebe na sede da vingança que rejubila,
sem um físico opositor para além do vizinho,
a mim que muitas vezes mataram como ratazana,
eu que fugia dos muros, dos guetos que me
cercavam,
trepava por fogueiras que me derretiam a carne já
destilada,
que me faziam mentir a fé, cristãos-novos,
Amesterdão, eis-nos protestantes
duma prisão sem nome que nos apagava da história,
guardada pelos guardiões das chaves, dos que não
têm consciência,
e queiram queimar todos os livros,
dos que cospem tanto sobre o irmão,
como quem o confunde com o inimigo,
que a debalde repelimos,
entre os mortos, e os vivos e os dilacerados,
emerge este presente
desenterrado das catacumbas, soterrando as mãos
dos corpos, das cabeças
elas já, vendadas.
Palestine espera ao vento,
esquece-se e apodrece como uma nêspera à derivada
no mediterrâneo,
é esquecida, resta-lhe o cheiro das noites, o
desespero e a dor …
resta-nos o calor dum mapa passado, cada vez mais
raro…
Quis um homem que assim fosse
cada vez menos que assim não seja
Quiseram poucos que fosse diferente,
Quis a luta ser luta e a morte
a fome que ensina a comer.
André Luís
Alves
Nasceu
em 1987 em Lisboa. Mestre em Engenharia Física pelo IST. Trabalhou em
investigação no CERN, Suíça e em Telecomunicações em Lisboa e Roma. Em 2017,
deixou o seu trabalho e decidiu ser repórter. Viveu na Ucrânia, Inglaterra e
Itália, e viajou pelo Senegal, Marrocos, Turquia e Irão. Publica poesia desde
2015, em várias revistas sobretudo na Apócrifa. Trabalha como fotojornalista
freelance para o Diário de Notícias, Jornal de Notícias e TSF Freelance
Photojournalism