quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

SEI QUE ME ESPERAS - João Apolinário

 

SEI QUE ME ESPERAS

 

Sei que me esperas lutas e confias

na minha voz subterrânea de combate

na força dos meus gritos de rebate

na coragem das minhas agonias

 

Sei que esperas nas ruas ou vielas

nas aldeias no mar ou nas cidades

em todos os lugares em que haja celas

olhos petrificados de ansiedades

 

Anda comigo, vou falar da esperança

da vida que ainda agora principia

Perde essa amarga e vã desconfiança

toma a minha mão de amigo e confia

 

Anda comigo, eu canto as tuas dores

sou mais poeta sendo teu irmão

Nesta densa floresta sem flores

o sangue e a alma são o mesmo pão

 

Quando as verdades forem as que amamos

no silêncio do nosso pensamento

E a força que nos guia o movimento

ganhar a paz que tanto desejamos

 

Quando rufarem todos os tambores

anunciando a grande cavalgada

e os heróis coroados de flores

cantarem a vitória desejada

 

Vamos colher o trigo semeado

cantar a vida pelos campos fora

a pouco e pouco vai nascer a aurora

e é muito urgente estarmos lado a lado.

 

João Apolinário

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

V Israel - André Luís Alves

V

Israel

 

Luto contra o inimigo porque me faz sentir vivo,

luto logo existo, ataco para me defender, não queria estar aqui

sei lá, as lágrimas que provoco, tento não pensar,

as fotografias provam o que faço, mesmo as que eu tiro,

são o que quero esquecer, os arquivos roubados,

epitáfios de vidas que se esfumaram como se secasse um rio.

 

Escravos da memória,

este é o nosso trauma, o nosso mapa horário,

temos séculos de raiva e nenhum enviado mensageiro para nos ensinar a paz,

ou a paz, que soubemos esquecer,

ninguém para nos ensinar “Quero viver, não quero morrer”, mensagem estranha

nesta cartografia de ruínas e vísceras, vésperas, vivos e mortos, faustos do ausente.

 

O judaísmo não pode ser definido pela vítima.

Não criámos o Holocausto, logo não nos pode definir como povo.

 

O que nos resta senão os restos do muro, o tempo a nascer do muro, o antes que já ninguém se lembra, o êxodo, o exílio, o enforcado, a fogueira, o eterno murro no deserto, decerto um mar de lamento.

Jerusalém, lá estarei no próximo ano,

L’Shana Haba’ah B’Yerushalayim.

Nascemos da esperança, da consciência, da órfã folha viva de erva, prata que brilha, aceitámos viver assim porque a memória colectiva nos banalizou o mal, nos ensinou o horror, nos perfurou a razão plena de não perguntar, de fechar os olhos,

mesmo quando todo mundo vê. A sobrevivência e a segurança são mais que isto.

“Eu quero viver, não quero matar, nem morrer.”

Tratamo-los como os ratos,

mataram-nos como ratos,

intentaram extermina-nos como uma praga de ratos.

 

Agora nós, eles ratos,

na duplicação infinita do espelho do mal, um espelho face a outro espelho colérico,

a violência bebe na sede da vingança que rejubila,

sem um físico opositor para além do vizinho,

a mim que muitas vezes mataram como ratazana,

eu que fugia dos muros, dos guetos que me cercavam,

trepava por fogueiras que me derretiam a carne já destilada,

que me faziam mentir a fé, cristãos-novos, Amesterdão, eis-nos protestantes

duma prisão sem nome que nos apagava da história,

guardada pelos guardiões das chaves, dos que não têm consciência,

e queiram queimar todos os livros,

dos que cospem tanto sobre o irmão,

como quem o confunde com o inimigo,

que a debalde repelimos,

entre os mortos, e os vivos e os dilacerados, emerge este presente

desenterrado das catacumbas, soterrando as mãos dos corpos, das cabeças

elas já, vendadas.

 

Palestine espera ao vento,

esquece-se e apodrece como uma nêspera à derivada no mediterrâneo,

é esquecida, resta-lhe o cheiro das noites, o desespero e a dor …

resta-nos o calor dum mapa passado, cada vez mais raro…

 

Quis um homem que assim fosse

cada vez menos que assim não seja

Quiseram poucos que fosse diferente,

Quis a luta ser luta e a morte

a fome que ensina a comer.


 André Luís Alves

 Nasceu em 1987 em Lisboa. Mestre em Engenharia Física pelo IST. Trabalhou em investigação no CERN, Suíça e em Telecomunicações em Lisboa e Roma. Em 2017, deixou o seu trabalho e decidiu ser repórter. Viveu na Ucrânia, Inglaterra e Itália, e viajou pelo Senegal, Marrocos, Turquia e Irão. Publica poesia desde 2015, em várias revistas sobretudo na Apócrifa. Trabalha como fotojornalista freelance para o Diário de Notícias, Jornal de Notícias e TSF Freelance Photojournalism


domingo, 28 de janeiro de 2024

West Bank (Cisjordânia) - André Luís Alves

 

IV


IV

West Bank (Cisjordânia)

 

O que faz um homem numa cadeira de rodas ali?

 

Tínhamos pedras e queríamos que as pedras fossem nossas,

que as mortes fossem nossas ao caírem no chão,

nós os ratos desta peste lenta, pestilenta forma

de durar, existir é resistir,

luta após luta,

mas a fadiga esmói,

esboroa,

esmerila e abrevia todos

mesmos os diamantes,

as esperanças vãs,

as pedras que agora são cacos de vidro ao sol

brilham como as estrelas, alucinações.

 

Desde que lutamos que já só sabemos lutar,

pilharam as nossas casas,

pilharam os nossos livros,

pilharam as nossas fotografias,

pilharam as nossas memórias,

pilharam tudo que podiam pilhar.

Estropiaram-nos,

nós os eternos refugiados, nós as figuras na paisagem em êxodo,

refugiados em casa, onde é a casa, se ao mudarmos de lugar perdemos a identidade.

Ou não terá o lugar ficado mudo ao se chamar casa?

 

Mudas as mulheres,

lutam também, têm filhos no meio da discórdia,

filhos da ciência dentro das ondas do inimigo, filhos dos homens soldado

que ao anteverem a morte nas nuvens do dia anterior,

e só a morte os guia na noite,

congelam o seu esperma como estrelas dessas noites, promessas,

filhos do parto do nunca, da promessa também ela dum país adiado,

apagado – nessa noite sem lua.

 

As mulheres ululam, nasceu outra criança.

Filha do congelador do inimigo adentro o calor do deserto,

filha do amor, filha de quem resiste, vivo e morto,

existe,

e assim, promessas de mais homens soldado como doces tâmaras,

e de mulheres para lhes sobreviverem e darem ao sol,

as luzes que não vêem, aos tormentos que pressentem,

filhos de todas as sedes, mártires, mais de quarenta.

Nascidos sem água, mártires, entre as oliveiras queimadas

nascidos no crepúsculo do muro, entre lutas,

os nascidos do muro,

o locus, dos sem futuro.

André Luís Alves

 Nasceu em 1987 em Lisboa. Mestre em Engenharia Física pelo IST. Trabalhou em investigação no CERN, Suíça e em Telecomunicações em Lisboa e Roma. Em 2017, deixou o seu trabalho e decidiu ser repórter. Viveu na Ucrânia, Inglaterra e Itália, e viajou pelo Senegal, Marrocos, Turquia e Irão. Publica poesia desde 2015, em várias revistas sobretudo na Apócrifa. Trabalha como fotojornalista freelance para o Diário de Notícias, Jornal de Notícias e TSF Freelance Photojournalism

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

André Luis Alves - III Memória


III

Memória

Shalom izkor,

Não perdoamos,

não perdoámos, não termos sido perdoados.

Vítimas da vítima, topologicamente paralisados, num túnel escuro, onde jaz,

um corredor que visto de cima é na verdade, um toros de espectáculo, arena

acelerador de partículas, ratos da má sorte colonialista, parasita eu, porque nós,

todos espectadores. O mundo. O contrário do amor não é o ódio, é a indiferença.

 

Somos olfacto sem caminho para chegar,

Somos escravos se queremos comer.

Checkpoint Gaza

Checkpoint Charile

Um moeda de ouro em Kazimierz Dolny depois no Gueto d’Opole

Oiço os disparos em Syrets. Conto as estrelas apagadas na História.

Babi Yar, Opus um

Zyklon B, Opus nas estrelas

Dá-me a mag…

 André Luis Alves

  Nasceu em 1987 em Lisboa. Mestre em Engenharia Física pelo IST. Trabalhou em investigação no CERN, Suíça e em Telecomunicações em Lisboa e Roma. Em 2017, deixou o seu trabalho e decidiu ser repórter. Viveu na Ucrânia, Inglaterra e Itália, e viajou pelo Senegal, Marrocos, Turquia e Irão. Publica poesia desde 2015, em várias revistas sobretudo na Apócrifa. Trabalha como fotojornalista freelance para o Diário de Notícias, Jornal de Notícias e TSF Freelance Photojournalism

 

 


quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

CONSCIENTEMENTE VIVO - Fernando Mouga

 

CONSCIENTEMENTE VIVO

Com a minha angústia coletiva

que o lúcido olhar o mundo

faz nascer e avoluma dia a dia

conscientemente vivo.

Poeta proibido

do jogo da beleza das palavras

porque elas se transformam

em claros sinais de luta e de esperança

que são dever da própria poesia.

Cidadão de todas as pátrias

Em cada uma choro, odeio, canto o rio.

Choro a escravidão, a miséria, a violência,

as vítimas diárias que não conheço

mas tão próximas na raiva e no pranto.

Odeio os anti-homens construtores de guerras,

semeadores da morte,

racistas, exploradores dos outros homens,

ladrões da liberdade

nos cinco continentes.

Canto o rio

quando os homens-humanos são mais donos do cosmos

em pacíficas naves vogando ao infinito

e hora a hora mais se dignificam,

quando os povos se libertam

e os carrascos fogem ou perecem,

e as aves cantam,

e as flores vibram,

e as florestas executam sinfonias,

e os céus e os mares em mais verde e mais azul se espelham

e a beleza da terra renasce em nossos olhos,

quando, enfim, a vida se ressurge natural

e milhões de coisas belas acontecem.

 

Para além do terror atómico

conscientemente vivo

a minha esperança coletiva

na solidária paz universal

que acontecerá um dia que não verei

mas que hoje já inteiro represento

poeta sem raça nem fronteiras.

 

Fernando Mouga

In, o diário 25-5-86 “CULTURAL

 

 

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

CONSELHO ADMINISTRATIVO - João Craveiro

 

CONSELHO ADMINISTRATIVO

 

Com risos brancos,

e mãos brancas, quase transparentes,

tomam o lanche no gabinete

e decidem

quantos operários a despedir,

para salvar a empresa, dizem,

entre uma anedota e outra…

O açúcar escureceu, como a tarde,

no fundo da chávena;

e a colher,

a um gesto mais exuberante

salta inocente dos dedos e voa

por sobre os papéis (e apenas isso

consegue suster a respiração

dos Excelentíssimos Administradores).

 

João Craveiro

In, o diário de 25-5-86 “CULTURAL

domingo, 21 de janeiro de 2024

MÃE DO FILHO DE ABRIL - Fernando Peixoto

 

MÃE DO FILHO DE ABRIL

À Delegada Sindical, grávida,

espancada durante uma greve

Tu que és mãe

amiga e minha irmã

abre os braços e afaga a madrugada

abre os olhos à luz desta manhã

que inunda de esperança esta alvorada

 

Tu que é mãe

e trazes nos teus dedos

a força de mudar esta cidade

revela-nos a todos os segredos

desse teu caminho prá Liberdade

 

Tu que és mãe

irmã e minha amiga

que transportas no ventre um dia novo

vem falar-me do orgulho da barriga

que sabe estar gerando um novo Povo

 

Tu que és mãe

e assumes a certeza

desse filho de Abril que em ti se cria

vem falar-nos da luta sempre acesa

pra continuar Abril em cada dia


Fernando Peixoto

 


In, o diárioCULTURAL25-5-86

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Poema a um Poeta - guida burt

Poema a um Poeta

 

Daniel Filipe, poeta cabo-verdiano

01-02-1925 – 06-04-1964

 

Da tua inóspita e pequena ilha, onde não chovia

e, porém, enorme, “do tamanho do medo da solidão da angústia”,

com um mar de pobreza e de injustiça a rodeá-la,

partiste um dia…

 

Também tu, como os amantes, tinhas “olhos e coração e fome de ternura”,

e, antes que fosse tarde,

com urgência,

da “Invenção do Amor” foste capaz…

 

Ousaste dar as mãos à esperança e à doçura,

e pediste que ao mundo não fosse recusada a paz

deram-te, sem tardança,

os ferros de uma cela e toda a dor da tortura…

 

Em chão estrangeiro, onde secura não havia,

tinha cheiro indelével a tua saudade pela ilha

tinha cheiro a chuva que caia

e era este um cheiro tão forte…

 

Era chuva com cheiro a exílio,

a sofrimento e morte…

 

guida burt