segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Versos do pobre católico - Ruy Belo

Versos do pobre católico

 

Nem palavras nem coisas tenho para o teu altar

e é hoje a tua festa agora é que me lembra, Senhora da Assunção

Tiveste sobre os teus alvos pés alguns momentos

brilhantes de fervor as presidentes de importantes movimentos

Mas tens a fronte fria e dois olhos brilhantes

Estava distraído. Não te sentes feliz

se o povo reza livremente o terço no país

e são muito cristãos os nossos governantes?

Nem palavras nem coisas nem a própria distração será bastante

para fazer passar por cima dos mais próximos devotos esse olhar

que há de envolver o grande corpo mudo justo mas distante

Nem palavras nem coisas tenho para o teu altar

e é hoje a tua festa agora é que me lembra, Senhora da Assunção

Venho como um gatuno — o que rouba de frente, arrisca e puxa a faca,

não o político o industrial o presidente dos conselhos de administração

— depositar à superfície desse teu imenso olhar

poisado sobre os dias e os gestos e as águas na ressaca

entre aromas e fumos esta enorme incorrigível distração

que me enche a vida o passo e o regaço e deixo finalmente transbordar

Era tudo o que tinha era mais esta grande mágoa

de ter medo de vir talvez por não saber nadar

no mar de piedade em que outros se comprazem como peixe na água

Ruy Belo

Todos os poemas, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000

 

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