II
Gaza
Quis dizer estrada
Mas só tinha olfacto,
Quis dizer parágrafo, mas não sabia ler,
Quis dizer Gaza, mas só disse, checkpoint.
Atravessaram-se como travessões num discurso
interrompido, à mira
de soldados suspensos no ar, com a violência de
Golias, prontos a esmagar
olhos ébrios, excitados, entre o poder e o medo,
a eros da certeza da missão,
que plano face à juventude das labaredas ou ao
halo das inconsciências,
para disparar não preciso de alvo, treino com os
meus amigos, entramos em casas,
deixo-lhes doces para as crianças, vinte shequels na mesa, uma simples patrulha nos telhados, os inocentes são culpados,
porque aqui todos são culpados,
Sem língua, falar o quê, que a sorte já não
existe, que a sombra já comeu a razão?
Nas vésperas do ataque, um, dois, três, todos os
números, num calendário de décadas, entre aldeias sem luz, os pesadelos da
noite anterior,
todas as estrelas que contemplámos, as searas de
ódio que semeámos sobre as terras
“uma terra sem pessoas, para nós, pessoas sem
terra”, colonizadas as raízes, a natureza reduzida a rectângulos, kibutz,
colonatos, a ocupação militar, manobras em escuta, manobras aleatórias, mais
uma patrulha indistinguível, como as cabeças, que as comandam, executam ou
perseguem.
Cem dedadas no cérebro tenro duma criança é
apenas um símbolo,
Daud, e o sangue amiúde de estilhaços escorre sobre
os olivais que choram depois de queimados.
Toda esta terra proibida, nem a areia é nossa,
passa-nos entre os dedos, roça-os num arrepio
esperamos os ossos na carne,
a carne sem osso, as crianças,
todos os ossos desejam o tendão dum país
e diante disto, desisto esmorecido,
pareço cego a lançar rockets, quatro mil rockets,
invenções mais anti-bloqueio que anti-semitas.
Todos somos semitas, todos precisamos duma casa,
um quarto.
Eis-nos diante da esperança.
Derrubam um homem numa cadeira de rodas.
Ele sozinho
Quis dizer estrada, mas só possuía o ar em volta
do nariz,
Quis ele dizer país, mas só lhe pertencia o nada.
Queria dizer medo, mas só tinha cegueira,
meda de balbucios e gritos, porque sim, e o que
arrepia
é que eu que cresci com esta guerra em casa,
numa casa sem porta,
porta sem estrada,
estrada para o nada,
e o presente despedaçado.
Aquele orifício no muro é uma estrada,
um espelho, a chama dum rosto, uma farpa, uma
lupa,
uma navalha afiada vista de perto na glote, que
pende sufocada,
mesmo quando vejo um olho dum velho já morto do
outro lado,
mesmo quando vejo jovens judeus bêbados em Hebron
no Purim
mesmo quando vejo um árabe louco, de ambos os
lados,
mesmo quando vejo, e já não vejo nada, e a
confusão explode.
Corremos paralelos para a reunião do confronto,
quem atacou quem?
Primeiro, segundo. Espiamo-nos de lados opostos
do mesmo muro,
o muro que é um espelho de fantasmas, de
esqueletos que habitam na ruína
nas vinhas da ira em que bebemos o ódio iracundo,
rutilante,
que refulge com armas e berços, facas que afiamos
na língua,
granadas e fisgas, actos que se pagam caro,
quando à noite
acordamos com um laser na testa, inocentes,
crianças, tanto faz
o horror funda-se no aleatório da banalidade,
uma, duas, três vezes, as estrelas
o refutar da causalidade da guerra, mas que
pergunta, mato-te porque és
não porque me atacas, e ao sê-lo, cegas-me numa
cabala sem limites.
“Não existia terra sem pessoas – nós criámos este
sonho que impõe um pesadelo aos outros.”
Só tínhamos olfacto,
e os outro tinham terra, ferramentas, água e
minerais,
tralhas, memórias e traumas,
Vieram duma promessa, e nós somos por isso os sem
terra, Nakba desde então.
Não esqueceremos, o dia, a pedra em todos os
sapatos desde que os pés correm, e as cabeças fogem, na terra que tremeu, e
treme.
Com a nossa fuga, abriu-se uma fossa na
Palestina, um aterro fundado no maestro
calor que foi ordem naquele caos, destino
Beirute, nas estrelas o massacre escrito,
as estrelas sempre esse confronto de cores, na
noite sem cor, que ali engolfava os dias. A serpente de mil cabeças teleguiadas
ou a surata do elefante.
André Luís Alves
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