segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

POEMA DO FUTURO -- António Gedeão

24 de Novembro de 1906 - 9 de Fevereiro de 1997

 

POEMA DO FUTURO

 

Conscientemente escrevo e, consciente,

medito o meu destino.

No declive do tempo os anos correm,

deslizam como a água, até que um dia

um possível leitor pega num livro

e lê,

lê displicentemente,

por mero acaso, sem saber porquê.

Lê, e sorri.

Sorri da construção do verso que destoa

no seu diferente ouvido;

sorri dos termos que o poeta usou

onde os fungos do tempo deixaram cheiro a mofo;

e sorri, quase ri, do íntimo sentido,

do latejar antigo

daquele corpo imóvel, exhumado

da vala do poema.

Na História Natural dos sentimentos

tudo se transformou.

O amor tem outras falas,

a dor outras arestas,

a esperança outros disfarces,

a raiva outros esgares.

Estendido sobre a página, exposto e descoberto,

exemplar curioso de um mundo ultrapassado,

é tudo quanto fica,

é tudo quanto resta

de um ser que entre outros seres

vagueou sobre a Terra.

 

António Gedeão

in 'Poemas Póstumos'

 

1 comentário:

Manuel M Pinto disse...

Data de falecimento: 19 de Fevereiro