Poema da alienação
Não é este ainda o meu
poema
o poema da minha alma e
do meu sangue
não
Eu ainda não sei nem
posso escrever o meu poema
o grande poema que sinto
já circular em mim
O meu poema anda por aí
vadio
no mato ou na cidade
na voz do vento
no marulhar do mar
no Gesto e no Ser
O meu poema anda por aí
fora
envolto em panos
garridos
vendendo-se
vendendo
“ma limonje ma
limonjééé”
O meu poema corre nas
ruas
com um quibalo podre à
cabeça
oferecendo-se
oferecendo
“carapau sardinha matona
ji ferrera ji
ferrerééé...”
O meu poema calcorreia
ruas
“olha a probíncia”
“diááário”
e nenhum jornal traz
ainda
o meu poema
O meu poema entra nos
cafés
“amanhã anda a roda
amanhã anda a roda”
e a roda do meu poema
gira que gira
volta que volta
nunca muda
“amanhã anda a roda
amanhã anda a roda”
O meu poema vem do
Musseque
ao sábado traz a roupa
à segunda leva a roupa
ao sábado entrega a
roupa e entrega-se
à segunda entrega-se e
leva a roupa
O meu poema está na
aflição
da filha da lavadeira
esquiva
no quarto fechado
do patrão nuinho a
passear
a fazer apetite a querer
violar
O meu poema é quitata
no Musseque à porta
caída duma cubata
“remexe remexe
paga dinheiro
vem dormir comigo”
O meu poema joga a bola
despreocupado
no grupo onde todo o
mundo é criado
e grita
“obeçaite golo golo”
O meu poema é contratado
anda nos cafezais a
trabalhar
o contrato é um fardo
que custa a carregar
“monangambééé”
O meu poema anda
descalço na rua
O meu poema carrega
sacos no porto
enche porões
esvazia porões
e arranja força cantando
“tué tué tué trr
arrimbuim puim puim”
O meu poema vai nas
corda
encontrou sipaio
tinha imposto, o patrão
esqueceu assinar o
cartão
vai na estrada
cabelo cortado
“cabeça rapada
galinha assada
ó Zé”
picareta que pesa
chicote que canta
O meu poema anda na
praça trabalha na cozinha
vai à oficina
enche a taberna e a
cadeia
é pobre roto e sujo
vive na noite da
ignorância
o meu poema nada sabe de
si
nem sabe pedi
O meu poema foi feito
para se dar
para se entregar
sem nada exigir
Mas o meu poema não é
fatalista
o meu poema é um poema
que já quer
e já sabe
o meu poema sou
eu-branco
montado em mim-preto
a cavalgar pela vida.
Antonio Jacinto
(Poemas, Sobreviver em Tarrafal de Santiago)
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