A Implosão da Mentira
ou
o Episódio do
Riocentro
Mentiram-me. Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente.
Mentem
de corpo e alma,
completamente.
E mentem de maneira tão
pungente
que acho que
mentem sinceramente.
Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes.
Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que
mentindo história afora
vão enganar
a morte eterna/mente.
Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo
um cego
pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.
Sei que a verdade é difícil
e para alguns
é cara e escura.
Mas não
se chega à verdade
pela mentira,
nem à democracia
pela ditadura.
Fragmento 2
Evidente/mente a crer
nos que
me mentem
uma flor nasceu em
Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo
permanente.
Mentem. Mentem caricatural-
mente.
Mentem como a careca
mente ao pente,
mentem como a dentadura
mente ao dente,
mentem como a carroça
à besta em
frente,
mentem como a doença
ao doente,
mentem clara/mente
como o espelho
transparente.
Mentem deslavadamente,
como nenhuma lavadeira
mente
ao ver a nódoa
sobre o linho.
Mentem
com a cara limpa e nas mãos
o sangue quente. Mentem
ardente/mente
como um
doente
em seus
instantes de febre. Mentem
fabulosa/mente
como o caçador que
quer passar
gato por
lebre. E nessa trilha de mentiras
a caça é que
caça o caçador
com a armadilha.
E assim cada
qual
mente industrial?mente,
mente partidária?mente,
mente incivil?mente,
mente tropical?mente,
mente incontinente?mente,
mente hereditária?mente,
mente, mente,
mente.
E de tanto mentir
tão brava/mente
constroem um país
de mentira
—diária/mente.
Fragmento 3
Mentem no passado. E no presente
passam a mentira a limpo.
E no futuro
mentem novamente.
Mentem fazendo o sol girar
em torno
à terra medieval/mente.
Por isto,
desta vez, não
é Galileu
quem mente.
mas o tribunal
que o julga
herege/mente.
Mentem como se Colombo partindo
do Ocidente para
o Oriente
pudesse descobrir de mentira
um continente.
Mentem desde Cabral, em calmaria,
viajando pelo avesso,
iludindo a corrente
em curso,
transformando a história do país
num acidente de
percurso.
Fragmento 4
Tanta mentira assim industriada
me faz partir
para o deserto
penitente/mente,
ou me
exilar
com Mozart musical/mente
em harpas
e oboés, como
um solista
vegetal
que absorve a vida
indiferente.
Penso nos animais que nunca mentem.
mesmo se têm um
caçador à sua frente.
Penso nos
pássaros
cuja verdade
do canto nos
toca
matinalmente.
Penso nas flores
cuja verdade
das cores escorre no mel
silvestremente.
Penso no sol que morre diariamente
jorrando luz, embora
tenha a noite pela
frente.
Fragmento 5
Página branca onde escrevo. Único espaço
de verdade que
me resta.
Onde transcrevo
o arroubo, a esperança,
e onde tarde
ou cedo
deposito meu espanto
e medo.
Para tanta mentira só mesmo um poema
explosivo-conotativo
onde o advérbio
e o adjetivo não
mentem
ao substantivo
e a rima rebenta
a frase
numa explosão da verdade.
E a mentira repulsiva
se não explode pra
fora
pra dentro
explode
implosiva.
Affonso Romano Sant’Anna
Publicado no livro Política e paixão (1984)
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