quarta-feira, 10 de junho de 2020

INTER-VIAGENS - Ivo Machado


INTER-VIAGENS

No comboio direção a Lisboa, uma mulher
— humilde, tem sua idade no rosto de rosa encarnada —
acordou-me para vender Queijadinhas de Coimbra
e Pasteis de Tentúgal. E de repente, de Norte
para o Sul, o que alcanço
não é o que a mulher traz no cesto, o que alcanço
não é o cenário através da janela em movimento,
nem sequer os rumos das grandes questões da Poesia;
não pergunto onde começa ou acaba
a nossa melancolia como Povo, onde principia a viagem
sem saída que sempre me traz dentro de um poema.
O que alcanço é o nada, ou assim me parece
vou em viagem; vou de viagem
atravesso uma espessura de dédalos com ou sem funduras
de melancolia, com ou sem borboletas por entre as pétalas
das rosas abrindo, que pressinto débeis como frágeis
os meus laivos de memória salobra
reflectidos num animal serpenteando-se mais além
— Um réptil carregando o meu espanto
vou em viagem; vou de viagem
sabendo que desembarcando, voltarei de novo a embarcar
imaginando que os poetas
viajam por dentro das rosas encarnadas, na sombra
de uma árvore ou na cauda de um cometa, esperando
que desembarque a mulher fazendo as suas matemáticas
misturadas em perguntas ao coração
Ah, quantas Queijadinhas de Coimbra
e Pasteis de Tentúgal terão cumprido a sua função?
(Inédito)

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