sexta-feira, 3 de setembro de 2021

O Medo (Carlos Drummond de Andrade)

O MEDO

A Antônio Cândido

"Porque há para todos nós um problema sério...Este problema é o do medo."

ANTONIO CÂNDIDO, Plataforma de uma geração.

 

Em verdade temos medo.

 Nascemos escuro.

As existências são poucas:

 Carteiro, ditador, soldado.

 Nosso destino, incompleto.

 

E fomos educados para o medo.

 Cheiramos flores de medo.

Vestimos panos de medo.

 De medo, vermelhos rio»

 vadeamos.

 

Somos apenas uns homens

e a natureza traiu-nos.

 Há as árvores, as fábricas,

doenças galopantes, fomes.

 

Refugiamo-nos no amor,

 este célebre sentimento,

e o amor faltou: chovia,

ventava, fazia frio em São Paulo,

 

Fazia frio em São Paulo...

 Nevava.

O medo, com sua capa,

nos dissimula e nos berça.

Fiquei com medo de ti,

 meu companheiro moreno.

 De nós, de vós; e de tudo.

Estou com medo da honra.

 

Assim nos criam burgueses.

Nosso caminho: traçado.

Por que morrer em conjunto?

 E se todos nós vivêssemos?

 

 Vem, harmonia do medo,

vem, ó terror das estradas,

 susto na noite, receio

de águas poluídas. Muletas

 

do homem só. Ajudai-nos,

 lentos poderes do láudano.

Até a canção medrosa

te parte, se transe e cala-se

 

Faremos casas de medo,

 duros tijolos de medo,

medrosos caules, repuxos,

ruas só de medo e calma.

 

E com asas de prudência,

com resplendores covardes,

atingiremos o cimo

de nossa cauta subida.

 

O medo, com sua física,

tanto produz: carcereiros,

edifícios, escritores,

este poema; outras vidas.

 

Tenhamos o maior pavor.

Os mais velhos compreendem.

 O medo cristalizou-os.

 Estátuas sábias, adeus.

 

Adeus: vamos para a frente,

recuando de olhos acesos.

 Nossos filhos tão felizes...

 Fiéis herdeiros do medo,

 

eles povoam a cidade.

 Depois da cidade, o mundo.

Depois do mundo, as estrelas,

dançando o baile do medo.

 

Carlos Drummond de Andrade

 

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