terça-feira, 26 de dezembro de 2023

ANTIDEUTERONOMIO II - ADÃO CRUZ

ANTIDEUTERONOMIO II 

No tempo em que as sardinheiras das varandas dos pobres

faziam parte dos nossos sonhos

florindo em poemas de sol e de cor

no tempo em que as andorinhas

teciam grinaldas de vida nos beirais

no tempo em que os rios bordavam a terra de areia branca

no tempo em que a brisa sussurrava

por entre as flores

e as fontes murmuravam seus amores

a aurora da nossa inquietação tinha o cheiro a maçãs

e o pulsar das coisas vivas

e o levíssimo sorriso dos jardins do paraíso.

Tudo amávamos em nobre sentimento de exaltação

o mundo era transparente e fácil de amar

e cheirava a feno

a razão ondulava a frágil seara

em suave alento na quietude universal da liberdade

como harmoniosa mulher suspirando ao vento.

Tão inocente amor

tanta alegria

quem pensaria que os rios de pranto

haveriam de chegar um dia

em negra nuvem de calado voo.

Não podemos deixar que a nuvem negra

se abata sobre nós e o pensamento…

e o pensamento nos agarre no desértico silêncio

sentados ao vento

no falso sol da varanda da ilusão

e da erosão da consciência adormecida.

Não podemos deixar que a todos nos transforme

em filhos da morte

filhos de nenhum lugar e de toda a parte

figuras do vale das sombras

esgueirando-se nas sombras de outras sombras

sonâmbulos fantasmas

sem gestos de vida que nos façam acordar.

E quando for dia de sol bem alto

porque haverá sempre um dia

a rasgar a deuteronómica nuvem negra

que ameaça os campos do futuro

e o sereno assombro das pedras

e os peixes verdes dos poemas

e os rubros sorrisos que cheiram a mar

e os passos dos que aprendem a andar

e os rios que correm nos olhos de uma criança

e a memória sem tempo

jamais a exaltação da santidade

estará na morte e nas cinzas da cidade.

E não haverá espinhos nos olhos

e aguilhões nos flancos da vida…

E não haverá armas de destruição maciça

no coração das mães dos filhos exterminados.

Na diáfana manhã de um novo dia

apenas a plangente harmonia de um Stabat Mater.

 

ADÃO CRUZ

 

Sem comentários: