domingo, 18 de agosto de 2019

DE NOITE - Gomes Leal


DE NOITE

Ele vinha da neve, dos trabalhos
violentos, custosos, da enxada,
cantando a meia voz, pelos atalhos.

A mulher, loura, infeliz, resignada,
cosia junto à luz. O rijo vento
batia contra a porta mal fechada.

Ao pé havia um Cristo, um ramo bento
e uma estampa da Virgem, colorida,
cheia de mágoa, olhando o firmamento…

Uma banca de pinho, mal sustida,
vacilante nos pés; um candeeiro,
companheiros daquela negra vida.

O homem, alto, pálido, trigueiro,
entrou. Tinha as feições queimadas, duras,
dos que andam, com enxada, o dia inteiro.

A mulher abraçou-o. As linhas puras
do seu rosto contavam já tristezas
de grandes e secretas amarguras.

Tinha chorado muito as estreitezas
daquela vida assim!… Talvez sonhado
um dia com palácios e riquezas!

Ele deitou-se a um canto, fatigado
de erguer-se, alta manhã, todos os dias
mal voavam as pombas do telhado.

fora, nuvens grossas e sombrias
no pesado horizonte. Ele assim esteve
-- as noites eram ásperas e frias --.

Ela cobriu-o duma manta leve,
esburacada, velha. No telhado
ouvia-se cair, sonora, a neve.

Ela então meditou no seu passado;
no seu primeiro beijo, nas lembranças,
talvez, do seu vestido de noivado,

e nas tardes das eiras, e das danças
às estrelas, e aquela vez primeira
que a rosa lhe furtou das longas tranças;

e aquela tarde, junto da amoreira,
que trocaram as mãos; e na janela;
e quando olhavam, juntos, a ribeira;

e quando ela tímida e singela…

…………………..

fora, dava o vento nos caixilhos;
não brilhava no céu nem uma estrela.

E, àquela hora da noite, por que trilhos
andariam no mundo – ela cismava –
nas misérias, talvez, sem rumo, os filhos!...

Ele, na manta velha, ressonava.


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